Diário da Região, 09 de julho 2004

Somente sádicos e vândalos de instinto conseguem tirar proveito da morte de parte da memória de um povo, preferindo que sua malignidade prevaleça sobre a história, lançando-a nas paredes das trevas ofuscadas e turvas – o exato símbolo de sua maldade.
Uma relíquia histórica de alta estima e profundo apreço para um povo não deve ficar no abandono, à espera de que acontecimentos nefastos apressem o seu desaparecimento das gerações atuais. Patrimônio cultural é coisa sagrada que representa alma e sangue de uma gente que o edifica com grande amor e deixa construído o sentimento de dignidade que deve ser sempre coroado de estima e admiração.
Memória não é simplesmente o ato de reter idéias. Em seu bojo, vamos encontrar fatos, ciências e cultura, interligando dessa maneira o passado ao presente de um determinado povo. Portanto, a memória é algo indelével e intangível que merece ser adequadamente protegida, em se tratando de fatos e coisas dignos do registro histórico para que jamais sejam esquecidos.
No romper da aurora do dia 28 passado, quando do meu cooper diário pela conhecida orla segunda, parei em profundo estado de tristeza ao dar conta de que um símbolo da memória do nosso povo era transformado em cinzas. Confesso meu torpor, pois ficara demais comovido com a cena fúnebre, vendo famintas labaredas consumirem sem compaixão aquela relíquia viva da história de nossa região.
A barca Rose’s que ficou abandonada e castigada pelas rigorosas e cruéis variações atmosféricas que não perdoaram um bem cultural banhado de encanto e louvor.
Servia a saudosa barca, enquanto ancorada no desprezo e na repulsa descabida para colóquios amorosos, ou melhor, para transas de gente pertencente ao refugo social, bem como de anfiteatro para viciados em drogas, em flagrante desrespeito a famílias que fazem seu cooper na citada orla. Esse local encontra-se comprometido pela incúria e negligência do poder público que insiste em manter aquela área de lazer intransitável devido ao matagal impiedoso e acolhedor de serpentes.
Quando me deparei com o sinistro acontecimento senti que as marolas do Velho Chico também se condoíam, parando cadenciadamente suas ondulações sobre a superfície fluvial e acenando com lágrimas sentidas o adeus melancólico a sua velha companheira que jamais voltará a singrar seu doce leito de vida que, com grandeza invejável, serve de aconchego para a integração nacional. A barca, hoje, torrada pelas mãos dos vândalos e bárbaros que destroem as artes, os monumentos e a própria história, singrou pelas águas benditas do Velho Chico, constituindo-se interação social entre as cidades ribeirinhas banhadas pelo rio-mar no turismo flutuante, graças à iniciativa pioneira de seu proprietário, o saudoso Ermi Ferrari, deste subscritor.
Ermi era além de ser um homem altamente honrado, jornalista combativo e expedicionário que tinha o prazer de envergar o verde-oliva, jamais esquecendo sua boina verde, símbolo de lutas e vitórias do Glorioso Exército Brasileiro. Era dessa forma, todo impecável que ele se apresentava nas solenidades cívicas e militares.
A barca Rose’s teve um triste e melancólico fim, vítima que foi do desprezo do olhar cultural, descendo ao sepulcro do destino sem a canora melodia de despedida ou a harmonia reverencial do toque de silêncio. Foi consumida pela fornalha da maldade, crueldade e insensatez, deixando atrás de si um passado glorioso que agora se torna em cinzas de saudade. Adeus, barca Rose’s!
Geraldo Dias de Andrade é Cel. PM/RR – Bel. em Direito – Cronista – Escritor – Membro da Academia Juazeirense de Letras – Membro da ABI/Seccional Norte.