Malhando o Judas

 

 

Judas saiu do balanço da corda para o das pistas de dança. Ele mesmo. O traidor, o covarde, o maior entre todos os piores, o que o mundo odeia, o de nome banido, o só lembrado ao se acusar alguém de deslealdade. Agora, ele é hit. Graças a Lady Gaga. Ela mesma. A mulher drag queen, diva das paradas de sucesso, partidária do tratamento de choque, esperta na tática marqueteira do falem mal, mas falem de mim. Tática que exige coragem. É se dispor a levar um tiro pela culatra caso ele venha. Às vezes mortal, às vezes de raspão. Dá para desviar, sair são e salvo, até com aplausos. Coragem para tocar nos intocáveis, dos quais se passa a léguas. Intocáveis como Iscariotes. Só os mais corajosos, daqueles afoitos, se arriscam.

 

Gaga, sempre afoita, resolveu soltar a música Judas logo na Semana Santa, por provocação, para causar impacto, sabendo que iria direto no nervo ciático. Quer indignar, irritar, lesionar, botar pilha nos que gostam de irritar, indignar e lesionar. “Estou apaixonada por Judas! Judas! Judas! Judas! Gaga!” Refrão que passa longe da poesia, e que se, para muitos (eu incluso), é só para dançar, sem neuras, sem se levar tão a sério, para outros muitos, muitos mesmo, soa como atrito de ferro no asfalto, serra elétrica ligada, britadeira, incômodo grosseiro. Heresia.

Não querem ouvir nada de novo sobre Judas. Não querem ninguém o defendendo, contestando o que já foi escrito, revendo suas atitudes, lhe traçando um perfil diferente. Ele é martelo batido. Tem de permanecer o venenoso, o traiçoeiro, o pior. É para deixá-lo na escuridão, pendurado na árvore, malhá-lo com paus e pedras, atear-lhe fogo, destroçá-lo, mostrá-lo como o repugnante. Descrevê-lo exatamente como foi dito na versão sagradamente aceita, a oficial. A que se acha conveniente. Só que os inconvenientes, os questionadores, os desafiadores, até dos mais tênues, que querem apenas se jogar sob os canhões de luzes das danceterias, teimam em existir e se multiplicar.

E duvidar. Sem aquela atitude tão vil, o Cristianismo teria se expandido? Ele fez o que fez pelas 30 moedas de prata ou por ser necessário fazer, por nós? Terá sido o homem mais injustiçado da história? Algo foi omitido? Algo foi utilmente apagado? Perguntas e perguntas, que puxam outras e outras, válidas ou viajadas, com respostas que cada o dê crédito se quiser, se negue a acreditar, se esforce para sepultar.

Se Jesus não fosse entregue, preso, condenado, torturado ao extremo, morto, nos causaria o mesmo compadecimento, a mesma persuasão, nos deixaria convictos de seu papel de messias? Se escapasse ileso, casasse, tivesse filhos, seguisse a vida, ou envelhecesse sozinho, aposentado das pregações, sem forças, até morrer naturalmente, nos faria crer na sua missão designada? Não foi preciso um para dizer “eu sei quem é” e apontar “é ele”? Não fosse o beijo deste um não teria de ser o beijo de um outro? O sangue não teria de escorrer para nos salvar?

É controverso o tal Judas. Inexistem provas concretas a seu favor, poucos, muito poucos, advogados de defesa diante dos inúmeros promotores. Nada há, além da crença de cada um, do raciocínio, a vontade de confiar no que se quer confiar, ou de desacreditar no que se quer desacreditar. Pode-se defender, por lógica ou por falta de noção, que Judas tenha sido escolhido e mandado à missão a contragosto, por ser o mais forte entre todos, o que seguraria nos ombros o peso de saber que seu nome seria desprezado dali em diante, por milênios.

Tudo por causa superior, a de evitar que a maior tentativa de divulgar o amor ao próximo, de criar um mundo melhor, fracassasse, e que hoje fôssemos ainda mais cheios de raiva, rancor, inveja, discriminação, soberba e veneno do que somos. Ou pode-se referendar que foi Iscariotes a mais torpe criatura que já se conheceu, que veio dele o primeiro golpe para assassinar o amor sincero e imaculado, e que, transbordando de remorso, se entregou ao inferno.

Depende de cada um estar disposto a levar em conta o que cantou Raul Seixas: “Parte de um plano secreto/Amigo fiel de Jesus/Eu fui escolhido por ele/Para pregá-lo na cruz”. Ou o que escreveu Nikos Kazantzakis em A última tentação de Cristo, quando Jesus conforta Judas: “A mim coube a parte mais fácil. A você, a mais difícil”. Ou agora Lady Gaga: “Mesmo as trevas perdoaram seu caminho tortuoso/Aprendi que nosso amor é um tijolo/Você constrói uma casa ou afunda um cadáver”.

Ou ficar com a interpretação fixa, dura, sacramentada, do “Vá! E faça o que tem que ser feito.” A de que Iscariotes, insatisfeito, revoltado, não entendeu que a tarefa de libertar era para almas e não judeus dos romanos. Religião é terreno pedregoso, difícil de trilhar, de pôr em xeque aquilo para o qual fomos treinados a crer por uma vida inteira.

 

 

É para deixá-lo na escuridão, pendurado na árvore, malhá-lo com paus e pedras, atear-lhe fogo, destroçá-lo, mostrá-lo como o repugnante

Mesmo se houvesse uma revisão histórica, se achassem evidências arqueológicas, documentos, de que o dedo-duro era outro, de fora, que a emboscada foi armada de maneira diferente, por um grupo alheio, de desconhecidos, ou que o próprio Jesus teria batido na porta de Pilatos e dito “Sou eu a quem procuras”, os gritos de “blasfêmia!” vindos de trás das Bíblias e das cruzes em punho ainda seriam ouvidos aos montes. Ou por fé cega, ou total ignorância, ou infames interesses. Sepulcros caiados ainda existem.

Judas, como ele é e sempre foi, nos é indispensável. Único, anticristo, detonando a sangria. Centralizando o mal, atraindo nossa execração. Sorrateiro, carrancudo, nauseante, delator, peçonhento, sombrio. Tem de ser assim. Nenhuma história, nem a maior de todas, empolga sem um bom vilão.

 

Texto: Miguel Rios/NE10

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *