João Gomes é o Homem do Ano na Música no Men of The Year, da GQ Brasil
“Aqui só tem tigrinho, banca de apostas…” É o que chama a atenção do pernambucano João Gomes, 23, em Las Vegas. De camisa branca, calça jeans e chinelos, ele aproveita para curtir a liberdade de caminhar pela rua tranquilamente, algo impossível hoje no Brasil. Quer ir andando até o compromisso na sede da Meta, assim conseguirá conhecer um pouco mais a cidade. “É como na música de Luiz Gonzaga”, define Gomes, e começa a cantar: “Quem é rico anda em burrico, quem é pobre anda a pé, mas o pobre vê nas estrada o orvaio beijando as flô, vê de perto o galo-campina, que quando canta muda de cor”.
O cantor chegou aos Estados Unidos em 10 de novembro para participar da 26a edição do Grammy Latino, que rolaria três dias depois. Ficou empolgado e envaidecido com o convite de realizar um show na premiação. “Lembro que, nos outros dois anos que vim, pensei: ‘Caramba, essa galera que se apresenta aqui é muito braba, né?’. Era uma coisa que queria muito viver, mas acho que na hora vai dar aquele nervoso, vou me mijar todinho”, brincou, antes do evento.
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Deu tudo certo. Além de brilhar no palco, ele venceu o prêmio de melhor álbum de música de raízes em língua portuguesa com o projeto “Dominguinho”, em parceria com Jota.Pê e Mestrinho. O EP despretensioso gravado entre amigos virou um hit. Para 2026, o trio anunciou uma turnê internacional pela França, Alemanha, Espanha… Segundo o astro, a obra foi um ponto crucial de seu ano. Desde antes do lançamento, ele repetia a máxima: “Nem todo mundo vai escutar, mas quem ouvir vai gostar”. Gomes caiu no gosto do público.
“Mas tem quem não goste, viu?”, ri, meio tímido. Ele assume uma postura mais séria ao refletir sobre ter “furado a bolha”. “A gente começa a entender que é instrumento, né? Muitas pessoas verão nisso uma possibilidade, vão fazer piseiro, forró… Dois ritmos que até hoje sofrem muito preconceito.” Ele relembra uma situação que viveu ao pedir água durante um ensaio em um dia quente. Para sua surpresa, uma pessoa resolveu “brincar” questionando se a equipe não estava acostumada a passar calor e sede por ser nordestina.
“Pensei: ‘Caramba, velho, foi isso mesmo?’. A gente precisa fazer a nossa parte através da música e ganhar nosso espaço, assim como Gonzagão fez. Mas sempre foi difícil. Sempre vão nos menosprezar por causa da ignorância. As pessoas pensam que, de onde viemos, é só mato. Então, devemos continuar falando de coisas positivas.”
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Cabeça e coração no lugar
Em um passado próximo, momentos como esse talvez tirassem seu sono. Para Gomes, a opinião alheia importava, para o bem ou para o mal. Porém, começou a entender que o caminho é seguir abrindo o coração e sendo o mais verdadeiro possível em seus trabalhos, esforçando-se para produzir algo que o deixe orgulhoso. O resto não dá para controlar. “Consegui ter outro sentimento neste final de ano. Ano passado estava muito mais preocupado, aflito”, conta.
Para quem o acompanha, talvez fique difícil compreender a real dimensão do furacão que passou por sua vida em tão pouco tempo. Por trás do artista — que canta no Grammy, lota shows pelo Brasil, acumula 9,4 milhões de ouvintes mensais no Spotify e tem clipe com 368 milhões de visualizações no YouTube —, há um jovem de 23 anos que, em 2019, fazia suas primeiras postagens no Instagram mostrando momentos de diversão em Serrita, sua terra natal, ou a rotina do curso técnico em agropecuária no Instituto Federal do Sertão Pernambucano, em Petrolina, onde foi criado.
Apenas dois anos depois, essas publicações passariam a mostrar conquistas cada vez maiores: apresentações abarrotadas, parcerias com ídolos e até um vídeo emocionante de seu primeiro ônibus de turnê — fruto da popularidade arrebatadora do álbum de estreia, “Eu Tenho a Senha”, lançado em 2021, que teve todas as dez faixas no Top 200 Brasil do Spotify em um mês e contou com o hit que dá nome ao álbum na trilha sonora da novela global “Pantanal”.
Em nossa sessão de fotos, Gomes exibia um sorriso inebriante, mesmo visivelmente cansado após um voo de cinco horas até São Paulo. O carisma e o jeito brincalhão ao falar com as pessoas, sempre tirando onda e fazendo piadas, são as cerejas do bolo. “É uma eterna quinta série aqui”, fala.
Vestindo um costume preto, o astro trouxe consigo sua marca registrada: um boné de couro que só ele tem. Foi um presente da mãe, que encomendou o acessório a Irineu do Mestre, terceira geração de uma família lendária de artesãos de Salgueiro (PE). Desde 1900, o avô Mestre Luiz, o pai Zé do Mestre e agora Irineu colecionam uma clientela de respeito, tendo criado vestimentas para Luiz Gonzaga, Dominguinhos, o papa João Paulo II, Gilberto Gil… No caso de Gomes, o chapéu de couro nordestino ganhou tons de modernidade com uma aba reta. “É um bonéu”, ri.
“O hip-hop me levou para a literatura”
O menino do sertão pernambucano apaixonado por suas raízes, que cresceu frequentando as vaquejadas e os forrós que lhes sucediam, percebeu mesmo que poderia fazer música ouvindo rap. Em suas canções, mistura elementos característicos do aboio, canto tradicional dos vaqueiros entoado na lida do gado — longo e com vogais arrastadas —, com versos mais rápidos e cadenciados, típicos do hip-hop.
“O hip-hop me levou para o caminho da literatura. Comecei a ir atrás das referências de que os caras falavam nas músicas”, conta. Conheceu Belchior, por exemplo, quando escutou uma faixa do rapper cearense Don L, alguém a quem sempre recorreu para “ter algo positivo na cabeça”. Depois, ouviu o nome do escritor Charles Bukowski em outra faixa e não sossegou até devorar suas obras.
Gomes fala sobre a escrita como algo sagrado. Costuma escrever declarações de amor para a esposa (inclusive quando brigam), a influenciadora digital Ary Mirelle, 23, e recita para si mesmo poemas quando enfrenta crises de ansiedade. Põe no papel temas particulares, mas que ele sabe que tocam o coração de outras pessoas. Por isso, possui uma meta para março de 2026: além do lançamento do DVD gravado no fim de outubro no Rio de Janeiro, que reuniu 80 mil pessoas nos Arcos da Lapa, ele quer lançar um livro de poemas.
“Escrever é uma coisa que pode acontecer quando nada mais pode. Há certas coisas que são muito internas, alguns sentimentos ainda muito reprimidos. A escrita acaba explodindo de mim, é minha amiga mais pessoal”, explica, e recita um trechinho de algo que assinou recentemente. “Na calçada da minha casa, eu vejo a chuva cair. A lágrima no rosto agora vai secar, por trás daquele muro, a vida vai me dar novos caminhos para trilhar.”
Foi desse jeito que nasceu sua mais nova canção, “Meu Filho Jorge”, lançada em 14 de novembro — uma homenagem ao primogênito, Jorge, de quase 2 anos. Gomes não parava de refletir sobre o filho, o futuro e a passagem rápida do tempo. “Eu ficava pensando: ‘Meu Deus, o que que eu posso ensinar para ele?’. Vejo o Marcelinho, filho da Veveta (Ivete Sangalo), um menino bem tranquilo, educado, talentoso e carinhoso, e penso: ‘Poxa, será que meu filho vai ser assim também?’. Aí, tento ser melhor, uma pessoa mais íntegra, mais inspiradora para ele.”
Em setembro, chegou ao mundo o seu segundo herdeiro, Joaquim. Mesmo vivendo um presente acelerado, Gomes, responsável por hits como “Dengo” e “Aquelas Coisas”, se encontra de ouvido e coração no que virá. Para ele, 2026 será “um ano mais criativo”, um período para experimentar ainda mais. Assim, comprou um escritório no Recife para seguir matutando e trabalhando com o coletivo Delírio, equipe criativa que o acompanhou em “Dominguinho”. Tem chamado o espaço de seu “cantinho da criatividade”. É para lá que vai seu primeiro troféu do Grammy.
“Estou em uma vibe muito positiva sobre o meu futuro. Sinto que tem um bocado de coração conectado ao meu”, comemora.
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