O sucesso como esse de um vizinho é intolerável para a Venezuela, que possui as maiores reservas de petróleo do mundo e mesmo assim viu sua economia encolher 80% em menos de dez anos, mergulhando a maior parte da população na pobreza e levando um em cada quatro venezuelanos a deixar o país.
O comércio entre Guiana e Brasil acompanhou o boom, crescendo 2.700% no mesmo período. Do US$ 1,3 bilhão de trocas bilaterais em 2023, quase US$ 1 bilhão foram compras de petróleo da Guiana pelo Brasil. Uma eventual invasão desestabilizaria a região, causaria novo fluxo de refugiados, gastos extras com a defesa do Brasil e o fim desse próspero comércio.
A Venezuela deve US$ 150 bilhões ao mundo, dos quais US$ 2,5 bilhões ao Brasil. Esse rombo foi criado pelo financiamento brasileiro de obras no país, como o metrô de Caracas, sistemas de saneamento, pontes, estradas – itens de infraestrutura que tanto fazem falta ao Brasil –, além de uma siderúrgica e um estaleiro, segundo apuração da CNN Brasil no ano passado.
Em duas décadas, 60% das empresas venezuelanas fecharam, por causa das arbitrariedades do regime bolivariano, que impõe controles de preços para segurar a inflação causada por seus gastos excessivos e pela necessidade de importar resultante da própria desindustrialização, em um círculo vicioso.
A combinação de falta de empregos e perspectivas, empobrecimento e repressão política levou um em cada quatro venezuelanos a deixar o seu país, separando famílias e agravando o sofrimento da população. Dos 8 milhões que partiram, 640 mil vieram para o Brasil. É um povo trabalhador e talentoso, que se integrou à sociedade e é bem-vindo, mas que representa um fardo para as precárias redes de saúde, educação, saneamento, habitação e transportes.
Investigações do FBI e processos na Justiça americana acusam Maduro e outros integrantes do regime de envolvimento com narcotráfico e lavagem de dinheiro. O Brasil tem 2.199 km de fronteira com a Venezuela. A livre circulação do crime organizado é uma das maiores ameaças na Região Norte.
A Venezuela adquiriu grande quantidade de armamento russo para as três Forças Armadas, e se tornou uma ponta-de-lança da Rússia, do Irã e da China, da qual depende para escoar seu petróleo e fazer frente a suas constantes necessidades de caixa.
O presidente Joe Biden conversou com Lula na segunda-feira, e deu tempo ao colega brasileiro para digerir a necessidade de se distanciar do regime bolivariano, que ele apoia desde o seu início, há mais de duas décadas. Passadas 96 horas desde a eleição do domingo, o secretário de Estado americano, Antony Blinken, denunciou a fraude e reconheceu a vitória da oposição na noite de quinta-feira.
A demora não se deveu a uma dúvida. A fraude foi visível, com a expulsão dos fiscais da oposição dos centros de contagem de votos, a divulgação das atas copiadas por eles e a ordem do Conselho Nacional Eleitoral de interromper a transmissão dos dados, na noite de domingo. Sem falar em todas as arbitrariedades cometidas pelo regime antes do dia da votação, que tornam o processo inteiramente viciado.
Na cabeça de Biden, o Brasil é o líder natural da América Latina, e deveria ter chance de tomar a frente na defesa da democracia na região. Países menores, governados pela direita e pela esquerda, como Uruguai e Chile, respectivamente, denunciaram a fraude, enquanto o governo Lula brigava com os fatos.
A omissão causou o encolhimento geopolítico do Brasil na única região em que ele reúne condições para projetar poder. O encolhimento também é moral. É verdade que as duas principais correntes políticas brasileiras – o lulismo e o bolsonarismo – são, cada uma a seu modo, antidemocráticas. Mas o Brasil é uma democracia, e seu povo nutre sentimentos de indignação contra a injustiça e de compaixão para com as vítimas da opressão. Os brasileiros não mereciam mais esse vexame.
*Lourival Sant’Anna é colunista do ‘Estadão’ e analista de assuntos internacionais da CNN