Matéria do Globo Rural enaltece criação de caprinos e ovinos em Casa Nova

O município de Casa Nova, no semiárido baiano, abriga o maior rebanho de caprinos do país

O município de Casa Nova, no semiárido baiano, abriga o maior rebanho de caprinos do país Lucas Lima e Paulo Júnior

Com pouco mais de 70 mil habitantes, o município de Casa Nova, no semiárido baiano, é um dos principais símbolos da caprinocultura no país.

A cidade tem quase 270.000 cabeças de caprinos, o maior rebanho no país, segundo o último Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2017.

Casa Nova retrata bem a atividade não só porque reúne tantos animais, mas também porque a maior parte deles (78%) está em propriedades rurais que se dedicam à agricultura familiar, como é usual no segmento – e também porque, assim como tem ocorrido em outras partes do país, os caprinocultores do município têm dado passos importantes rumo à profissionalização.

No Brasil, as cadeias de produção de caprinos e ovinos costumam ser descritas como informais, desorganizadas e pouco afeitas ao uso de tecnologia. Mas, aos poucos, graças a iniciativas de apoio ao segmento, o quadro tem mudado.

Extremamente adaptada às condições do semiárido, a criação desses animais tem sido a aposta de governos e organizações privadas para promover o desenvolvimento socioeconômico em uma das regiões com maior índice de pobreza do país.

Mesmo concentrando 75% do rebanho nacional de ovinos e caprinos, o Nordeste respondeu por R$ 977.000 do Valor Bruto da Produção, montante bem inferior aos R$ 2,6 milhões dos estados da região Sul, onde estão 15% desses animais.

A diferença reflete as desigualdades no modo de produção e também no acesso ao crédito, à assistência técnica e aos mercados.

“O ambiente institucional minimiza as falhas de mercado no Sul, mas, no Nordeste, esses problemas são mais custosos. Só para se ter uma ideia, 90% da carne de ovinos do país é oriunda do mercado informal. Isso exige que o setor melhore sua organização”, explica José Eustáquio, pesquisador do Ipea.

É o que tem ocorrido em Casa Nova. Em outubro de 2018, produtores da região criaram a Cooperativa Agropecuária e Familiar de Casa Nova e Região (COAF), que permitiu a seus associados – atualmente são 35 – ganhar escala, vender diretamente para frigoríficos e para programas governamentais, dispensando a necessidade de negociação com atravessadores.

Com isso, os valores que recebem aumentaram sensivelmente: até o nascimento da cooperativa, os produtores recebiam, no máximo, R$ 17 pelo quilo do animal vivo; hoje, o quilo do caprino vivo sai por R$ 23 e o do ovino, R$ 24.

Existem falhas de mercado, que são minimizadas no Sul, pelo ambiente institucional”
— José Eustáquio Ribeiro, pesquisador do Ipe

“Antes, os produtores estavam nessa pegada, de muito desânimo, porque trazíamos os animais para a feira, mas o atravessador botava o preço lá embaixo. Tinha gente que levava o animal de volta e tinha quem chegava a ir duas a três vezes à feira para conseguir vender”, recorda o presidente da COAF, Valério Rocha.

Por meio da cooperativa, os produtores puderam firmar convênios importantes com o governo do Estado.

Nessa lista está um investimento de R$ 3 milhões do programa Pró-Semiárido para a construção de um frigorífico próprio, assistência técnica e o recebimento de cinco animais melhoradores da raça sul-africana Dorper, especializada na produção de carne.

Quando as obras do frigorífico terminarem, as margens da operação devem aumentar cerca de 25%, estima Valério.

Isso ocorrerá graças à redução dos gastos com o frete – hoje, os abatedouros mais próximos estão localizados nas cidades de Remanso e Pintadas, a 140 e 380 quilômetros de distância de Casa Nova, respectivamente.

“A gente tem tido mudanças com isso, e já se percebe que os agricultores estão se interessando e se empenhando mais para melhorar a qualidade dos animais. A gente tem feito vários intercâmbios com os cooperados, com visitas a experiências mais avançadas. Queremos conseguir vender o cordeiro com 6 meses a 1 ano e pesando de 14 a 16 quilos”, diz Valério.

Queijo azul de cabra, inspirado no gorgonzola doce italiano, produzido pelo Capril do Bosque, da produtora Heloisa Collins — Foto: Lucas Lima e Paulo Júnior

Queijo azul de cabra, inspirado no gorgonzola doce italiano, produzido pelo Capril do Bosque, da produtora Heloisa Collins — Foto: Lucas Lima e Paulo Júnior

Os números dos abates no Brasil dão uma pista sobre o alto nível de informalidade no segmento. No ano passado, os estabelecimentos sob inspeção federal abateram pouco mais de 44 mil ovinos e 120 caprinos.

Além de insignificante em relação ao rebanho nacional, que, segundo estimativas, tem mais de 22 milhões de animais, os registros concentram-se em oito estados – nenhum deles do Nordeste.

De acordo com a pesquisadora e chefe-geral da Embrapa Caprinos e Ovinos, Ana Clara Cavalcante, os desafios que os criadores nordestinos enfrentam são tanto tecnológicos (entram aí fatores como sanidade, genética e produtividade do rebanho) quanto não tecnológicos, como o acesso a mercados, o processamento e a logística.

Tecnologia

“O que a gente observa é que têm ocorrido mudanças, especialmente nos desafios não tecnológicos, a partir do surgimento de novas lideranças e de novas organizações. Há exemplos muito positivos, que têm mudado a realidade de alguns polos de produção, inclusive abrindo mercados e gerando oportunidades”, destaca Ana Clara.

Emanoel Amarante, técnico supervisor do componente produtivo, de acesso a mercados e sustentabilidade ambiental do Pró-Semiárido, afirma que o apoio à cadeia da caprinovinocultura é considerado estratégico para a política de desenvolvimento agrária da Bahia, estado com o maior rebanho do país.

“Para se ter ideia, nos mais de 140 territórios atendidos pelo Pró-Semiárido, a caprinocultura sempre foi o grupo que mais teve produtores rurais a ser atendidos. Você chegava a um território com quatro comunidades, e 50% a 60% dos agricultores queriam trabalhar com a caprinocultura, porque já era com o que eles trabalhavam. Essa já era a principal fonte de renda deles”, conta Amarante, que cita a falta de abatedouros certificados como um dos principais gargalos da cadeia no estado.

“Por isso que a gente vem trabalhando forte com o Sistema de Inspeção Municipal e Estadual no contato com essas pequenas agroindústrias. Aqui em Juazeiro mesmo, que está entre os três maiores na produção de caprinos da Bahia, não tem um abatedouro. O abatedouro que tem aqui está fechado. Então como é que a carne vai chegar até o consumidor? Provavelmente grande parte dela é ilegal e não acessa o mercado formal para virar referência”, ressalta o zootecnista.

Tinha gente que chegava a ir duas a três vezes à feira para conseguir vender”
— Valério da Rocha, presidente da COAF

As iniciativas de reorganização e fomento à cadeia ocorrem também em outros estados do Nordeste. No Ceará, o Projeto Paulo Freire, do governo estadual, já distribuiu mais de 15.000 matrizes melhoradoras de rebanho a 5.500 de leite de cabra, em uma iniciativa que conta com recursos do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida), o mesmo que financia o Pró-Semiárido.

Na outra ponta, um convênio com o governo federal assegura a compra de leite de 350 produtores por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

A criação de caprinos e ovinos promove a inclusão social e fortalece a atividade no país — Foto: Lucas Lima e Paulo Júnior

A criação de caprinos e ovinos promove a inclusão social e fortalece a atividade no país — Foto: Lucas Lima e Paulo Júnior

“Com esse projeto em implantação, os produtores começam a ter visibilidade. Quando o Estado adquire o leite, cria-se renda, e os produtores passam a ter mais consciência sobre a organização do rebanho, a criação de reserva alimentar, a sanidade e a reprodução. Antes, muitas vezes os produtores criavam os animais, mas não tinham essa organização e nem o planejamento”, explica o coordenador da Coordenadoria do Desenvolvimento das Cadeias Produtivas da Pecuária da Secretaria de Desenvolvimento Agrário do Ceará (Codep), Márcio Peixoto.

Com um pequeno rebanho de cabras em Tauá, no interior do Ceará, o produtor Pedro Marcelino é um dos beneficiados pelo projeto. Ele está na atividade desde a década de 1990, quando adquiriu sua primeira cabra para consumo próprio de leite, e hoje tem um rebanho de até 100 animais, que produz até 50 litros por dia.

“Não vou dizer que temos conseguido alcançar 100% dos nossos objetivos, mas graças a Deus a gente tem conseguido sustentar a família e ter a satisfação de produzir o leite para além do nosso consumo local”, conta o produtor.

Da subsistência para o empreendedorismo, seu próximo passo é a produção de queijos em parceria com os demais produtores da região, organizados em associação e cooperativa. Com a estrutura pronta, eles aguardam a inclusão da pequena queijaria no serviço de inspeção municipal – e fazem planos de expansão para comercialização em escala estadual e nacional.

“A gente tem feito um trabalho de divulgação. Buscamos sensibilizar quem é criador de caprinos a dar esse pulo, para que ele passe de criador a produtor”, comenta Pedro. “É aquela coisa: quando você trabalha e tem retorno, você tem estímulo, tem vontade de fazer mais e fazer melhor”, completa.

Mercado

Quem já tem acesso ao mercado consumidor de queijos e derivados de leite de cabra atesta a importância de iniciativas de profissionalização da cadeia.

“Tem quem ache que a entrada de um produtor na cadeia significa o surgimento de mais um concorrente. Só que basta você olhar o que já aconteceu em outros países, e também o que vem acontecendo aqui, para ver que uma cadeia mais numerosa e mais organizada ganha muitos clientes, destaca Heloisa Collins, mestre queijeira da Capril do Bosque, de Joanópolis, em São Paulo.

Existe uma tendência de o produtor pensar que cada um que entra na cadeia é mais um concorrente”
— Hloisa Collins, mestre queijeira da Capril do Bosque
Heloisa Collins, mestre queijeira da Capril do Bosque — Foto: Lucas Lima e Paulo Júnior

Heloisa Collins, mestre queijeira da Capril do Bosque — Foto: Lucas Lima e Paulo Júnior

A produtora, que trabalha hoje com um rebanho de 80 animais e produz 800 quilos de queijo por mês, trilhou um caminho que parece ser o mesmo traçado pelos produtores de Tauá e de outras regiões do país atendidas por programas de fomento à caprinocultura.

Ela começou na atividade há mais de 13 anos, com 15 cabras mestiças e uma produção pequena, vendida no comércio local.

Aos poucos, ela ampliou seu território comercial, vendendo para estabelecimentos de outras regiões, incluindo restaurantes da capital do Estado.

“Começou como uma produção doméstica e depois passou a ser um hobby forte, bem desenvolvido, com pesquisa. Foi aí que a qualidade melhorou. Isso nos deu ânimo para fazer um negócio profissional, e fui atrás da licença para produzir profissionalmente”, recorda a mestre queijeira, que hoje inspira outros produtores na região.

“É visível o número de criadores que não existiam na época que comecei e que existem hoje, mas o que eu noto é que são todos criadores muito pequenininhos, com uma produção bastante baixa e nem sempre legalizada”, observa Heloisa.

O crescimento do interesse pela caprinovinocultura tem impacto direto sobre os negócios de João Carlos Tavares de Melo, proprietário da AgroFTI.

O Plano de Desenvolvimento da Ovinocultura de Santa Catarina prevê que o rebanho catarinense deve atingir 1 milhão de animais na próxima década — Foto: GettyImages

O Plano de Desenvolvimento da Ovinocultura de Santa Catarina prevê que o rebanho catarinense deve atingir 1 milhão de animais na próxima década — Foto: GettyImages

Sediada em Bezerros, em Pernambuco, a empresa foi responsável por registrar neste ano o primeiro clone de ovino do país, replicando o premiado FTI Vicente TE 1669.

“A procura por reprodutores vem crescendo bastante, e muitos criadores que estão à procura de reprodutores já ligam querendo uma linhagem específica. O mercado já está muito mais antenado nesses números e tem um potencial muito grande tanto na ovinocultura quanto na caprinocultura. Basta organizar melhor essa cadeia”, avalia o empresário.

Ana Clara Cavalcante, da Embrapa Caprinos e Ovinos, diz ter esperança de que as experiências bem-sucedidas no centro-sul do país e nas regiões Norte e Nordeste sirvam de fonte de inspiração para transformações em escala nacional em ambas as cadeias.

“Nossas apostas são todas nesse sentido, de que, no futuro próximo, a gente possa dar escala a essas experiências positivas. Com isso, vamos garantir a existência de um modelo de produção com base sustentável, que assegure a oferta constante de produtos”, completa a pesquisadora.

Um milhão em dez anos

Santa Catarina tem um rebanho de apenas 250.000 cabeças de ovinos, mas lidera os abates formais do segmento no país – e está prestes a dar início a um plano estadual de desenvolvimento da ovinocultura.

Elaborado pela Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Santa Catarina (Faesc), em parceria com a Associação dos Criadores de Ovinos do Estado de Santa Catarina (ACCO), e apoio do Sebrae, o plano tem o objetivo de multiplicar o rebanho catarinense por quatro, elevando o contingente para 1 milhão de animais até a próxima década.

Os problemas em Santa Catarina são semelhantes aos do Nordeste. Sem escala, poucos conseguem formar lotes em quantidade suficiente para atrair interesse da indústria local”
— José Volni, presidente da ACCO

“A meta é bastante ambiciosa, mas a gente quer organizar e conduzir as coisas para que a ovinocultura passe a ser uma fonte de renda importante para muitas famílias no meio rural”, explica o presidente da ACCO, José Volni.

Os problemas dos produtores de Santa Catarina são semelhantes aos que existem no Nordeste. Sem escala, poucos são os criadores que conseguem formar lotes em quantidade suficiente para atrair interesse da indústria local, que busca no Rio Grande do Sul os animais que abastecem o Estado.

Potencial

Ainda assim, o cenário é promissor: Santa Catarina é hoje o Estado brasileiro que mais importa carne ovina e caprina – foram 1.400 toneladas em 2022, a maior parte (64%) do Uruguai.

“Já existem projetos na iniciativa privada que seguem o modelo de integração de suínos e aves. Nós queremos aproveitar esse conhecimento na cadeia de carnes e a capacidade que o estado tem de formar algumas cadeias organizadas, em que o frigorífico já tem contrato direto de fornecimento com criadores”, afirma o dirigente.

“É um pouco diferente da criação de suínos e aves, mas já temos projetos com essas características sendo desenvolvidos no oeste do Estado.”

Caso seja bem-sucedido, o Plano de Desenvolvimento da Ovinocultura de Santa Catarina deve gerar faturamento de R$ 500 milhões por ano e ser o vetor do surgimento de oito a dez novas ocupações produtivas, segundo os idealizadores da iniciativa.

O foco está na produção de animais jovens, de menos de um ano, com carne de alta qualidade. No primeiro momento, a produção deverá abastecer o mercado interno, mas os organizadores também estão de olho no mercado internacional.

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