Aldem Bourscheit
Casos anteriores no país atingiram animais livres e cativos. Aves infectadas deveriam ser até sacrificadas, avalia veterinária
As infecções começaram a ser identificadas em abril, num filhote de vida livre. Outras foram confirmadas até julho – em aves cativas da mesma espécie, em Curaçá –, quando o ICMBio confirmou o surto de circovírus entre os animais e suspendeu a soltura de mais aves.

Uma ararinha-azul voando livre em área protegida, na baiana Curaçá. Foto: Association for the Conservation of Threatened Parrots (ACTP)/ICMBio/Divulgação
Seria a primeira vez que a enfermidade acomete aves livres da muito ameaçada espécie. A situação atrasa a reintrodução do emplumado, que passou mais de duas décadas extinto na natureza, reconhece Ugo Vercillo, diretor da ong BlueSky Caatinga, uma das responsáveis pelo retorno da espécie à região.
Segundo ele, o vírus quebrou a meta de liberar 20 aves por ano. “Se o plano tivesse sido cumprido desde 2022, a população em vida livre poderia ser de 60 ou 70 indivíduos, contra as atuais 11 aves”.
Para reduzir riscos, as ararinhas que sobreviveram após a soltura são monitoradas, enquanto na mesma localidade baiana são desinfetados recintos, poleiros, ninhos e comedouros dos animais em cativeiro, por órgãos federais e estaduais.
Diante o drama, a veterinária Lilian Eloy defende que todas as aves liberadas sejam capturadas e examinadas, inclusive porque algumas podem não apresentar sintomas da contaminação, mas seguir disseminando o vírus. A medida é defendida pelo ICMBio, que coordena o plano de conservação da espécie.
Contudo, Vercillo avalia que capturar animais libertos seria mais prejudicial à reintrodução do que a doença. Além de não haver espaço nos criadouros para abrigar os animais separadamente, eles podem perder habilidades para sobreviver ou até morrer durante o manejo.
“Além do aumento populacional, as solturas favorecem a integração social entre filhotes nascidos livres e aves antes liberadas. Esses indivíduos funcionam como ‘professores’ para os novos grupos, ajudando na adaptação ao ambiente natural e nas estratégias de sobrevivência”, explica.

Ao mesmo tempo, a veterinária Eloy não descarta que além de um isolamento completo, animais comprovadamente infectados sejam sacrificados. “Assim o vírus não se espalharia nos ambientes”, explica a especialista em aves silvestres, ligada ao Conselho Regional de Medicina Veterinária da Paraíba.
Segundo ela, proceder assim é estratégico para reduzir as ameaças da doença à reintrodução da ararinha e à vida de outras aves nativas da Caatinga, especialmente os psitacídeos, um grupo que inclui papagaios, araras, periquitos e maracanãs.
“Como o circovírus não é originário do Brasil, nossas aves nativas não têm imunidade e sofrem muito mais quando expostas a ele”, diz.
A circovirose em aves foi descrita cientificamente pela primeira vez na Austrália, no fim dos anos 1970, embora registros anteriores datem de 1888. Daquele país, a ong Wildlife Health aponta que o patógeno pode ter se espalhado pelo mundo de carona no comércio legal e ilegal de aves.
Por outro lado, Vercillo pede precaução e defende que baterias de testes atestem a continuidade das infecções, pois há casos de recuperação espontânea. “O filhote identificado como o primeiro positivo testou negativo em agosto e há registros semelhantes em outras espécies de aves neotropicais”.
“Isso reforça que as respostas imunológicas das aves sul-americanas diferem das de psitacídeos do chamado ‘velho mundo’, como australianos e africanos, frequentemente usados como referência para casos de circovírus”, detalha.

Incerta rota infecciosa
Até agora, não há registros de infecção por circovírus em galinhas, patos e outras aves de criação. Variantes afetam porcos e cães domésticos e selvagens, mas o patógeno não traria riscos à saúde humana. Mesmo assim, sua recente detecção na Caatinga intriga especialistas.
“O vírus existe em cativeiro, mas, daí para aparecer em Curaçá, em um ambiente preservado, são outros quinhentos”, comenta Luís Fábio Silveira, doutor em Ciências Biológicas e curador das Coleções Ornitológicas do Museu de Zoologia da USP.
Para a veterinária Lilian Eloy, não se pode descartar que o vírus tenha vindo da Alemanha, de onde vieram as ararinhas-azuis reintroduzidas na Bahia. Afinal, o patógeno pode permanecer incubado por meses sem sintomas, mas ainda assim ser identificado em exames laboratoriais.
A reportagem questionou Martin Guth, presidente da Associação Alemã para a Conservação de Papagaios Ameaçados de Extinção, sobre as medidas sanitárias antes do envio das aves ao Brasil, mas não obteve retorno até o fechamento. O ICMBio também não respondeu aos pedidos de entrevista, não esclarecendo sobre o controle da doença e quanto à efetividade dos protocolos de importação.
Já Vercillo (BlueSky) garante que todos os procedimentos foram cumpridos. “Todas as 101 aves trazidas da Alemanha para o Brasil passaram por testes rigorosos, tanto na origem quanto na chegada, apresentando resultados negativos para circovírus e outras doenças previstas no protocolo sanitário.”
Outra porta de entrada do vírus no Brasil pode ser o tráfico de animais silvestres. Estudos apontam que o comércio ilegal é vetor frequente de contaminação, tanto entre aves de vida livre quanto de cativeiro. “O tráfico não tem controle sanitário”, lembra Eloy.
Casos já foram documentados no Brasil. Entre 2009 e 2010, um levantamento em Centros de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) de Belo Horizonte e Uberaba (MG) detectou o vírus em aves apreendidas do tráfico, como papagaio-verdadeiro e arara-canindé.
Em 2017, o Zoológico Municipal de Guarulhos (SP) confirmou circovirose em um filhote de arara-azul-grande, também vítima do tráfico. Mais recentemente, em 2020, tucanos, araras vermelhas e canindé, tanto livres quanto em cativeiro, testaram positivo para o vírus no Mato Grosso.
No início de agosto, agentes federais flagraram outro caso explosivo de tráfico: um passageiro vindo da Nigéria transportava mais de 130 animais e partes. A carga incluía ratos empalhados, aves, cobras, morcegos e cabeças de gavião, papagaio e primatas. Todo o material, ilegal e sem certificação sanitária, foi destruído.
Segundo o Ministério da Agricultura e Pecuária, esses itens podem transmitir vírus e patógenos como raiva, gripe aviária e ebola, além de ameaçar a fauna silvestre e a biodiversidade brasileira.


Frear o vírus, não a reintrodução
Para Ugo Vercillo (BlueSky), a contaminação de ararinhas-azuis livres e em cativeiro evidencia a necessidade de serem mantidos diferentes centros de reprodução, distribuídos geograficamente e equipados com medidas de biossegurança.
“Mesmo seguindo protocolos rígidos, falhas podem ocorrer por limitações nos testes ou mutações virais. Assim, a diversificação de criadouros garante maior segurança contra surtos que possam atingir um único local”, ressalta.
Para a veterinária Lilian Eloy, reduzir as ameaças à biodiversidade brasileira depende de mais prevenção e de maior rigor sanitário. “Precisamos de medidas mais rígidas de biossegurança, testagem periódica de animais em Cetas, zoológicos e criadouros”.
Já Luís Silveira (USP), pondera que o programa de reintrodução sairá fortalecido se centrar esforços para identificar aves contaminadas na região de Curaçá – mesmo de de outras espécies – e na reintrodução de ararinhas-azuis asseguradamente negativas para o circovírus.
“É importante encarar este evento lamentável como uma suspensão. No momento em que esta questão sanitária e de biossegurança estiver equacionada, retorna-se a reintrodução”, defende.
O surto de circovírus em Curaçá é um desafio à preservação da ararinha-azul e um alerta sobre a vulnerabilidade das aves brasileiras a doenças exóticas. As medidas adotadas agora poderão determinar não apenas o sucesso da reintrodução, mas também desenhar ações adicionais para proteger a nossa biodiversidade