A aprovação, nesta terça-feira (18), da versão final do Projeto de Lei (PL) Antifacção representa, para o pesquisador Almir Felitte, um desvio completo do modelo de segurança pública defendido pelo governo federal. Autor do livro História das polícias no Brasil, ele afirma que o texto aprovado na Câmara “é completamente distinto do projeto original que foi enviado pelo governo” e que o processo legislativo conduzido pelo relator Guilherme Derrite (PP-SP) resultou em uma “desfiguração total” da proposta.
Em meio à politização que marcou a tramitação, Felitte diz que a atuação de Derrite e do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), priorizou interesses eleitorais e corporativos. “Com certeza, a atuação de Derrite colocou em primeiro lugar os interesses do grupo político ao qual ele pertence”, avalia. “Infelizmente, o que vimos ali foi uma espécie de legislação em causa própria. O bem comum não foi levado em conta”, complementa.
Felitte relembra que Derrite deixou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo para assumir a relatoria com três objetivos: um pessoal, de “cacifar uma candidatura ao Senado”, e dois voltados ao fortalecimento da “direita policial” no Congresso. Um deles era classificar facções criminosas como organizações terroristas, “possibilitando intervenções estrangeiras no país”, segundo o pesquisador. Diante da reação pública, o relator recuou e criou o crime de “domínio social estruturado”, que, para Felitte, “não tem o mesmo efeito”.
Mesmo assim, indica, Derrite obteve sucesso em desmontar a possibilidade de uma integração federal no enfrentamento ao crime organizado. “Derrite propõe acabar com qualquer possibilidade de que haja a coordenação de uma integração nacional nas políticas de combate ao crime organizado”, diz. Ele lembra que o texto original previa procedimentos para o perdimento de bens, com a articulação da União, estados e municípios, o que foi substituído por um modelo em que cada ente “pode agir a seu bel-prazer”.
Disputa da segurança
Para o pesquisador, o que tem por trás das mudanças é um embate sobre o “pacto federativo da segurança pública”. “Temos, de um lado, o governo propondo políticas de coordenação nacional, e, de outro lado, esses grupos estadualizados querendo manter um sistema arcaico que é excessivamente concentrado nas polícias estaduais”, compara.
Ele destaca que policiais hoje ocupam 10% das cadeiras do Congresso, formando um bloco com “muita força política” para defender o modelo baseado no binômio polícia militar–polícia civil, que classifica como “extremamente ineficiente”, ressaltando o caráter “excessivamente voltado à ostensividade e à repressão”.
Felitte critica ainda a estratégia de Derrite de apresentar cinco pareceres diferentes até a aprovação do último texto, o que, segundo ele, “mina o debate”. “Ficou difícil debater porque não sabíamos qual projeto tínhamos que debater”, explica.
Prevenção fora do debate
Apesar do foco na disputa institucional, Felitte afirma que o debate mais importante no combate ao crime organizado continua relegado: a prevenção. “A prevenção ainda não está sendo debatida de fato nesse projeto, e Derrite leva completamente para longe disso”, analisa.
Ele aponta caminhos que considera que seriam mais eficazes contra a ação de milícias e facções no Brasil: o rastreamento de celulares roubados, a fiscalização de fintechs e sites de apostas (bets) usados para lavagem de dinheiro e a atuação coordenada do Banco Central, do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e da Receita Federal.
O pesquisador também defende uma maior integração nacional entre polícias, organizações de investigação como o Ministério Público, e organizações civis. Ele lembra que esses pontos ainda podem ser debatidos na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública, que prevê a implementação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). “Definitivamente, a Segurança Pública entrou na pauta do nosso país”, declara.
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